15 junho 2007

Carta a dois irmãos

Ao que vai, não há muito a dizer
Que esteja bem, que esteja em paz
Que esteja com Deus, que esteja com a luz
Que saiba mais do que eu.

Ao que fica, o recado é longo
Mas preciso escolher bem as palavras
É inútil o conselho, é tolo o consolo
Nada mais sábio que o silêncio.
Daí o abraço mudo, que diz tudo
Mas não resolve.

É meu dever fazer-me entender
Perceber que a dor existe, e respeitá-la
Compreender se dor persiste, e resignar-se
Mas quando a dor insiste e não desiste... aí é que se resiste
Usa a dor pra criar força e ir em frente.

E de algum jeito, recolhe o que sobrou
Do tanto que aprendeu na convivência
Do tanto que brincou, que brigou, que se uniu e separou
E tornou a unir
Vê de novo o sol e o riso que vão nunca se apagar.

Dói, velho.
Mas é preciso deixar o passado passar
É possível fazer o presente se abrir
E até esperar um futuro brilhar.

Chore.
Mas depois torne a sorrir.
E abra os olhos
Venda a casa
Doe os livros
Recicle as latinhas de cerveja.

E o que mais?

Não sei há justiça, terrena ou divina
Não sou da polícia, não estou no governo
Não sei resolver a questão da segurança pública no país
Não sou contra nem a favor
Da pena capital ou da redução da maioridade penal
Não tenho nenhuma proposta, nenhuma resposta
E nenhum desejo de vingança.

Só sei ser mesmo o que sou:
Um cara que escreve canções
Um poeta que canta e toca um violão
Um pai que cria seus filhos
Um homem que ama sua mulher
Um ser de carne que acredita no espírito.

E assim sendo, amando e criando
Tocando, cantando e escrevendo
Vou levar sempre essa mensagem
De amor e paz
Porque não há mais
O que dizer.

26 dezembro 2006

O espírito de Natal mora na rua Álvaro Alvim

Aqui em Santos tem uma rua chamada Álvaro Alvim. Lugar sossegado, com belos sobrados de classe média. Há uns dois ou três anos, alguns moradores resolveram caprichar um pouco mais na decoração de Natal. Além das luzes coloridas, montaram presépios na garagem e colocaram bonecos de Papai Noel. Resultado: nas noites de dezembro a rua lota, com famílias inteiras admirando as casas como se fossem atrações turísticas.

Noite dessas levei as crianças para olhar. Adoraram. A pequena falou:
- Pai, o Natal é a época que eu mais gosto. Fica tudo tão bonito...
E o pequeno:
- Óia o papá-oéél... Ti líndu...

Nesse dia não descemos do carro, mas notei que numa das casas alguém vestido de Papai Noel conversava e tirava fotos com as crianças. Depois, soube que era um dos moradores das casas enfeitadas.

Na noite de 25, fomos lá de novo. Muito calor, paramos o carro e continuamos a pé. Muita gente em frente às casas, tirando fotos. Paramos diante da casa mais bonita, onde um boneco de Papai Noel em tamanho natural dançava na garagem conforme as pessoas batiam palma ou gritavam. Falei à Sra. Capi:
- É preciso ter um espírito muito bom para isso. Quem mora numa dessas casas perde toda a tranquilidade, com esse bando de gente no portão.

Nisso, saiu da casa uma menina, com feições orientais (é incorreto dizer "japonesa"?) e aparentando uns dez anos de idade. Armou duas cadeiras de praia bem rente ao portão, do lado de dentro, e sentou. Veio então uma mulher que devia ser a mãe da menina. Tinha cerca de trinta anos e andava apoiada em uma muleta. Abriu os portões, convidou todos a entrar e sentou-se, pacientemente, enquanto as pessoas tiravam fotos ao lado do Papai Noel dançarino. A dona da casa apenas olhava, sorrindo.

Saímos de lá comovidos, imaginando o que teria levado aquela mulher a gastar um dinheirão para enfeitar sua casa no Natal somente para abri-la a estranhos. Não me atrevi a perguntar, mas estou certo de que daria uma bela história.

E antes que eu me esqueça: Feliz Natal e um grande 2007 a todos os que lêem este blog. E aos que não lêem também.

23 novembro 2006

Consciência Negra (2)

Nem vou falar de Pelé ou Machado de Assis. Fiquemos só na música:

Jimi Hendrix, B.B. King, Muddy Waters, Robert Johnson, Bob Marley, Chuck Berry.
Miles Davis, Louis Armstrog, Charlie Parker, Dizzy Gillespie. Pixinguinha, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Johnny Alf, Moacir Santos, Cartola, Jorge Ben, Tim Maia, Djavan e vou parando por aqui antes que termine a tela. Citei esses nomes só para lembrar que os músicos mais criativos do último século são, em grande parte, negros ou mulatos.

Basta consultar a história para lembrar como surgiu o rock. Ou o blues, pop, reggae, jazz, samba, choro, soul, rumba, xote, maracatu ou baião. E veja que toda - toda - a música popular que se produz hoje no mundo vem da África, de uma forma ou de outra.

Consciência Negra (1)

No trabalho, escovo os dentes após o almoço. Enquanto capricho no canino direito (tá meio amarelado), ouço dois colegas conversando, um papo qualquer sobre a preguiça que dá voltar a trabalhar depois de encher a pança:

- Semana com cinco dias cansa muito. Aqui não foi feriado... Também, Dia dos Negões, onde já se viu?
- É... na Bahia é que deve ter tido festa. Lá só tem negão.
- Mas na Bahia tanto faz ser feriado ou não. Lá não se trabalha nunca.
- Por que será que na Bahia é assim se em Fortaleza, por exemplo, não é?
- É que Fortaleza é no Ceará. Lá a colonização foi holandesa.
- E na Bahia, foi o quê?
- Ora, foi africana!
- Então tá explicado.

Os dois saem do banheiro e fico eu a refletir com meu fio dental. Em menos de dois minutos, uma tonelada de preconceitos e desinformação (os holandeses no Brasil ocuparam Pernambuco, e não o Ceará). Isso porque o diálogo em questão foi travado entre dois profissionais muito qualificados, com pós-graduação, fluência em idiomas e salários de cinco dígitos.

A gente tem ainda muito a aprender.

14 novembro 2006

Dengue ou não dengue?

Passei mal no final de semana. Dor de cabeça, febre alta, corpo cansado. No domingo, não consegui levantar para tomar café. À noite, notei umas pintinhas vermelhas nas costas. Segunda-feira de manhã fui ao médico:

- Hmmm, seu Capi, isso parece dengue. Vamos fazer um hemograma?
- ...
- Não se preocupe, não demora. É só ir no guichê, carimbar essa guia, voltar ali na enfermagem e colher o sangue. Daqui a duas horas, no máximo, eu chamo na recepção e a gente volta a conversar.

Fui me arrastando até a enfermaria e fiz o exame. Terminando, falei à atendente:

- Posso ficar aqui um pouco? É que...
- Não, seu Capi, o local de esperar pelo resultado é na recepção.
- Tá, mas isso demora ainda mais de uma hora. Só quero ficar aqui alguns minutos porque...
- Melhor não, seu Capi. Se não quiser aguardar na recepção, pode dar uma volta pelo hospital ou conhecer nossa lanchonete. Mas avise na recepção para lhe chamarem quando o exame ficar pronto.
- MAS NÃO DÁ PRA LEVANTAR! EU TÔ PASSANDO MAL!
- Nossa, por que não falou antes? Então respire fundo, encoste a cabeça e descanse.

Passou uns cinco ou dez minutos, senti-me melhor e fui à recepção. Sentei e esperei. Uma hora e meia depois, impaciente, levantei e fui à porta do consultório. O médico me chamou:

- Bom, seu Capi, seu hemograma está absolutamente normal.
- Oba! Então eu não estou com dengue.
- Não é bem assim. O hemograma às vezes não é conclusivo em casos de dengue. Precisa fazer um exame sorológico específico.
- E como é esse exame? De sangue, também?
- Sim. Infelizmente, o senhor vai ter de tirar sangue outra vez.
- Mas porque já não fizeram esse exame, se já estavam com meu sangue?
- Porque esse exame só pode ser feito em posto de saúde público, pois os dados vão para o controle de epidemia. Mas eu vou lhe dar uma outra guia, e o senhor vai até qualquer posto de saúde e...

Pensei em perguntar porque me fizeram esperar duas horas, passando mal, pelo resultado de um exame que não é conclusivo. Não seria mais fácil me mandar direto ao posto de saúde? Mas vi que essa conversa não ia dar em nada e resolvi ser mais prático:

- Então me diz: se isso que eu tenho não for dengue, pode ser o quê?
- Pelo quadro, se não for dengue só pode ser rubéola.
- Mas rubéola eu tive aos 16 anos. Pode ter de novo?
- Não, rubéola só se tem uma vez. Então você tem é dengue mesmo.
- E se eu tenho dengue, qual é o tratamento?
- Nenhum. Só repouso e tomar bastante líquido. Se tiver dor e febre, paracetamol.
- Exatamente o que venho fazendo desde sexta-feira. Obrigado e bom dia.

Saí, levando comigo a tal guia do exame sorológico. Cansado (foram duas horas e meia no hospital), fui para casa e dormi o resto do dia.

Terça-feira acordei melhor e fui trabalhar, ainda que um pouco fraco e com uma leve dor de cabeça. Nem passei perto do posto de saúde.

E foi assim que eu perdi a chance de fazer parte das estatísticas oficiais da dengue no litoral paulista.

10 novembro 2006

Philosóphicas

Essa é pro Arturo pensar no final de semana:

- Por que precisamos de Religião, se temos a Ciência?
- Porque a Ciência diz como, mas não explica o porquê.

09 novembro 2006

Não me telefona!

Num comentário do post abaixo, Arturo Bandini fez uma ameaça muito séria: telefonar para mim caso eu não voltasse a escrever aqui. Não é preciso chegar a esse extremo! Cá estou, não só para evitar que o irritante aparelho toque em minha casa, mas também em atenção à Esfinge e, em especial, ao Simão e Emília, ilustres visitantes recém-chegados a este blog.

Detesto telefone. No trabalho, ele não pára. De cada dez ligações que recebo, cinco são para me trazer mais serviço, três só para me amolar e duas para perguntar algo que não sei responder. Às vezes demoro horas para fazer um trabalho simples, só porque tenho de parar toda hora pra atender o maldito.

Em casa, o telefone toca muito raramente, o que é uma delícia. Geralmente, quando toca, é alguma parente (mãe, sogra, tia, prima) querendo conversar – com a Sra. Capi, pois toda a família sabe como sou ruim de papo. Quando chamam meu nome, geralmente é algum serviço de telemarketing querendo me vender quaquer coisa. Outro dia foi assim:

- Seu Capi, o sr. foi sorteado e estaremos mandando, sem custo, o nosso novo hipermegaplus cartão de crédito que...
- Não quero.
- Ahn? Como assim?
- Não quero. Agradeço, mas não quero cartão de crédito.
- Mas por quê? O sr. já tem cartão de crédito?
- Não, nem quero ter.
- Mas então como o sr. paga suas compras quando não tem dinheiro?
- Ué, não pago. Aliás, nem compro. Não tenho dinheiro, não compro, não preciso pagar. Simples assim.
- Ah, seu Capi, mas e numa emergência?
- Numa emergência eu chamo os bombeiros. Cartão de crédito serve pra pagar restaurante e fazer compra em shopping. Isso não é emergência.
- Humpf! Então tá, seu Capi. Boa noite.
E aí o sujeito bate o telefone na minha cara, irritado. Alguém que eu nem conheço liga pra minha casa em horário impróprio, tenta me vender algo que eu não uso e ainda fica bravo porque eu não comprei. Isso tá certo?
É por isso que eu digo: quem quiser me telefonar, que ligue no celular. Vai estar desligado mesmo...

30 setembro 2006

Andanças (2)

Minhas caminhadas mais malucas foram no tempo que morava em São Paulo. Lembro de ter ido ver dois shows numa mesma noite, lá por 1993. Esqueci quais eram as bandas, mas um show acontecia no Aeroanta (Largo da Batata, em Pinheiros) e outro no Garage Rock, que ficava a umas duas quadras de distância. Como trabalhava no caderno de cultura de um jornal da cidade, tinha entrada livre em todos os shows, e ainda chamava os amigos.

Nessa época eu bebia e fumava muito. Ficava doidão mesmo. Entrava e saía de cada casa, via um pouco de cada show. Lá pelas tantas, o som muito ruim, não peguei ninguém e ainda perdi minha carona. Parei na barraquinha da esquina, comi um cachorro-quente reforçado e meti o pé na estrada – ou melhor, na avenida.

Segui inteira a Faria Lima, depois comecei a entrar por umas quebradas, sem saber bem pra onde ia. Passei pelo Itaim, Vila Nova Conceição, Moema, sei lá mais por onde. Lembrei de Alceu Valença (pelas ruas que andei/ procurei/ procurei procurei/ me encontrar). Era mais de quatro da manhã, nenhuma alma na rua.

Fui errando sem destino, guiado por meu senso sem direção. Quase amanhecia quando cheguei à avenida Indianópolis. Travestis encerravam expediente, recebi alguns convites, recusei. Entrei no apartamento da Saúde com o sol, caí na cama e dormi profundamente.

E era mais ou menos assim que me divertia quando tinha 20 e poucos anos.